sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

CENA AVULSA OU DON’T SMOKE IN BED

               O último trago, na ebriedade marítima de um domingo à tarde, restara-lhe na boca como um beijo amargo. E o dia parara por aquele momento: a fumaça enredando em torno de si lentamente, reduzindo até o final, quando os lábios quase roçaram as brasas. Depois estivera em um bar ao lado de amigos e enquanto engolia a onda fria da caneca de bebida, comentou rindo que a outra mão agora silenciava no colo. Ou pairava no ar regendo o táxi que no ato estacava, caminho para casa. Na manhã seguinte, aquilo lhe faltou à mesa, ao lado do café e do pão dormido com geléia. No ponto de ônibus, as mãos encontraram a rota dos bolsos, os olhos semicerraram-se de costume. O trabalho tratou de ocupar-lhe a cabeça, mas ao retornar para casa, sentiu por não ter a quem contar o dia do começo ao fim. Naquela noite, evitou o vinho, as canções nostálgicas dos tempos de faculdade, os telefonemas a amigos ou amantes que se dissipariam em lamentos, que se fundiriam em lágrimas, que o sufocariam com silêncios. Ao invés, deitou-se mais cedo e em seu escurecer, precipitou-se solitário.
               A manhã rompeu da fresta entre as cortinas. Da amendoeira, veio o piar que o despertou. A claridade inflamava-se pelo quarto. Ele se ergueu.
(Tema da Semana: "O último cigarro")

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quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Leia, por favor

Sei que as coisas pro seu lado não andam muito fáceis, mas algumas coisas precisam ser ditas.

Não quero simplesmente atravessar a rua quando por acaso te encontrar, nem torcer o nariz se te vir beijando um por ai. Não quero guardar mágoas. Não quero sentir raiva. Nem quero nenhum sentimento desse tipo vindo de você. Eu te amei muito, muito mesmo. E você foi realmente muito importante pra mim, pra minha vida, pra que eu pudesse me situar no mundo e entender mais ou menos pra que serve tudo isso afinal. Você foi companheiro.

Com você e só por sua causa pude acalmar minhas tempestades, animar minhas depressões e comemorar minhas alegrias. Você chorou e sorriu comigo. E me fez parar de chorar e prolongar o meu riso.

Tivemos horas e horas e horas de conversas as mais variadas e você soube me aconselhar, me ajudou a decidir, leu comigo, do seu lado estudei. Com seu apoio e com seu ânimo.

Cresci do seu lado, aprendi do seu lado, com você e por você. Muitos dias difíceis só me foram suportáveis porque você estava comigo e eu aliviava minha dor pensando que todo o trabalho acabaria e iríamos pra casa e ficaríamos juntos, a sós.

Teu cheiro e o macio da tua pele ainda me entorpecem.

Teu cheiro e o macio da tua pele e nossas conversas, e sua companhia e tudo isso que você me deu, e você me faz muita falta.

Mas não é mais possível, já disse.

É triste e eu estou chorando. Choro por mim e por você. Choro porque é definitivo. Choro por isso.

Porque é definitivo.

É triste e eu estou chorando.

Mas não é mais possível.


Um beijo,


Ruy



(tema da semana: O último cigarro)

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quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Olhou para as mãos e percebeu o tempo. Em "O Vento Levou" as mãos denunciaram Scarlet O´Hara, apesar do belo vestido feito de cortina, foram elas que permitiram a Ret Butler descobrir que ela não tinha mais uma vida rica e que tinha de plantar sua comida com as próprias mãos, coisa muito pouco aristocrática.
Ela não plantava nada, nem mesmo tinha uma fazenda, mas suas mãos denunciavam o tempo que passava, os espaços que ia percorrendo. Hoje tinha algo que nunca antes tivera. Perdera um pouco da juventude das mãos, mas ganhara um amor. Quando mais jovem, quase adolescente, nunca tivera aquilo. Suas mãos foram elogiadas e nada mais. Não conquistaram sua paixão adolescente. Talvez até tenham fisgado um ou outro caso. Mas ele, aquele de quem sentia falta todas as manhãs, de quem nem bem sabia porque gostava tanto, ele estava lá, apesar de suas mãos não serem mais tão belas.
O passado persistia em algum lugar de fácil acesso. O futuro estava por perto e ela quase podia percebê-lo. Mas ele era seu presente e isso era o mais importava.
Ainda assim, resolveu comprar um hidratante para as mãos.

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quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

MY BLUEBERRY NIGHTS

               O café às seis horas em ponto era rapidamente inundado de crianças tilintantes por canecas de chocolate com creme. A penumbra sempre vigente então cedia àquela súbita irradiação, recuando até o alto das xícaras fumegantes, que atravessavam o salão suspensas no ar. Observando a olhos discretos, ele anotou no caderno a transformação presenciada no quebrar da tarde: “Sem você, mesmo o frescor azul da menina orgulhosa de seus cachinhos não me alivia a alma, rondada por pensamentos sombrios”.
               Um velho mancou até o balcão, parando diante da vitrine de doces. Abordou-o o sorriso da garçonete, que ele só foi notar após os vários minutos em que seus olhos vaguearam entre morros espumosos de merengue e lascas de morango. Pediu-lhe desculpas, justificando sua falta de atenção no excesso de idade e que o simples existir já lhe era demasiado esforço. Na mesa em frente, o homem escreveu: “... a pobreza, a doença, a fadiga – o cetro do tempo”.
               Lábios tocaram-se, mãos acarinharam-se suavemente. A noite avançara e, num vento negro, trouxera luzes elétricas e casais enamorados. Uma única mulher permanecera sentada em um canto, consciente de sua solidão e comendo sem muita vontade uma fatia de torta. “Framboesas roxas e severas precipitadas no vazio”, registrou ele. Notou, então, que alguém o observava. Aqueles óculos de aros finos, os olhos de um líquido escuro, firmes sobre ele, a manga da camisa dobrada sobre o punho. E uma xícara de expresso indo flutuar de encontro à boca. Encararam-se durante o decorrer da madrugada. Quando enfim se cumprimentaram, o café estava para fechar, as travessas exibiam-se vazias através do vidro, a noite quente convidava ao passeio. No caderno aberto, ele fez uma última anotação antes de partir.

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segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Se o passado é um prólogo?

Que? Se o passado é um prólogo?

Ah, ta bom que vou filosofar assim.



Primeiro o “Fazes-me falta”

Fezes me faltam.

O tema triste das fezes que faltam.

Em minhas fezes.

Em mim, as fezes.

Em mim as fezes me faltam.

As fezes que faltam em mim.


Agora “O passado é um prólogo”

Tema pra outro monólogo

Presente doutro triste tema.

Triste tema sem falta de trema


Ó Trema: Fazes-me falta.

As fezes... fazem-me falta.


Mas se não me falha a memória...

Passado só é prólogo quando não tem mais

Da vida o que fazer


Ou pra quem não começa a escrever

A sua própria história

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Quito, Quito, te quiero Bonito…

A veces me hace falta el aire un poco contaminado del centro de la ciudad. A veces, ver los jubilados en la Plaza Grande leyendo el periódico. Algunas, comer los sánduches de pernil, el cebiche de San Agustín con jugo de naranjilla y tostado. Caminar en esas veredas angostas de la ciudad, mientras frente a ti aparecen iglesias cada vez más elaboradas. También me hace falta ver montañas cuando despierto, o talvez dormir con muchas cobijas y casi vestida por el frío. Oir el sonido de los aviones llegando en medio de la ciudad me hace mucha falta. Siempre me hace falta tomar café con pan, que no se necesita ponerle mantequilla porque tienen sabores y formas diferentes. Me hace falta también la sopa, que aunque cuando era joven la odiaba, hoy en día con algunas excepciones como la de sambo, me parece un plato digno de ser comido. Me hace falta mi perro loco que sigue las sombras y que en su otra vida debió haber sido gato, seguramente. Me hace falta ver a la gente caminando tranquilamente bajo lluvias torrenciales, porque la lluvia hace parte de nuestras vidas. Me hacen falta los buses tocando regueaton a todo volumen, los taxis amarillos, el trole y la ecovia. Me hace falta el rucu pichincha y el teleférico. Me hace falta recorrer la Av. Amazonas y terminar en la Foch por la noche. También ir a Ibarra, o a Cahuasqui para reencontrar aquellas personas que un día hicieron parte de mi vida. Me hace falta el mal humor quiteño, el hablar bajo quiteño, el mirar quiteño. Me hace falta el Sese y su salsa cubana, su olor, su color y sus vodkas tónicos. Me hace falta ver a la Orquesta Sinfónica, gratis. Me hace falta mi Quito cultural y los ciclopaseos. Me hace falta el olor de mi casa, y de la gente que hace parte de ella. Me hace falta su gente que hoy veo que tiene futuro. Sea el que sea. Me hace falta todo lo que fue parte de mi historia durante 25 años y que seguirá siendo siempre parte de esta vida leve aunque esté lejos.

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quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Um dia talvez contasse aquela história a seus netos. Não aos filhos, eles não entenderiam, mas os netos talvez, estariam distanciados pelo tempo, protegidos de julgamentos morais, ciúmes e outros sentimentos que por vezes turvam a compreensão.
Nem ela compreendia como pudera se apaixonar por um homem com um olhar. Como pudera viver o vislumbre de um romance, de uma outra vida, de outras possibilidades, em uma mera troca de olhares e palavras, no meio de uma rua movimentada, cheia de pessoas, barulhos, fuligem e calor.
Mas foi assim, numa tarde quente e ensolarada, em pela Avenida Rio Branco no Rio de Janeiro, que ela, casada com Otávio, mãe de Rafael, 5 anos e Helena, 3 anos, professora universitária de História, saindo da livraria Da Vinci, onde regularmente ia comprar livros, contente com o dia apesar de todo o calor, nesse dia comum, ela foi surpreendida por uma pergunta.
- Por favor, você pode me ajudar?
Parou e olhou para ele. Vestia terno preto, sapatos idem, uma mochila, o típico traje dos jovens executivos e advogados no Rio. Devia estar na casa dos 30, como ela. Não entendeu porque alguém tipicamente vestido estaria pedindo ajuda. Não devia ser para inteirar o almoço. Quase ao mesmo tempo, enquanto escrutinava a vestimenta e tentava entender a causa do pedido de ajuda, olho em seus olhos. E quase não conseguiu sair deles.
Ele sorriu ao seu olhar e demorou para falar.
- Preciso chegar à rua do Rosário, esquina com a Quitanda. Estou longe?
Só então ela percebeu o sotaque, mineiro, talvez. E começou a raciocinar.
- Não está longe, continue pela Rio Branco, mais a frente você verá a placa indicando a rua do Rosário, entre a sua direita e siga, pouco depois você já estará na esquina, lá também tem placa.
E sorriu, realmente achando divertido que aquele homem tivesse parado para perguntar algo tão simples, pois ele já estava no caminho.
Ele também sorriu.
- Um amigo me indicou vir de metro, mas sai na estação errada e já faz anos que não vinha ao Centro do Rio. Obrigado!
Todo o tempo mantiveram contato visual, como se nestes instantes só houvessem eles na calçada, como se estivessem perdidos num lapso de tempo-espaço. De repente precisava acabar, precisavam voltar para a rua cheia de gente, o calor, o barulho, mas se deram mais um instante.
- Por nada, você já estava no caminho certo.
Ele mexeu os ombros, ela ajeitou a bolsa. Eram os sinais de que o encontro tinha acabar. Nunca mais se veriam, não saberiam histórias um do outro. Mas já tinham uma história em comum. Naquele brevíssimo encontro, tiveram o vislumbre de tudo o que não tinham, tudo que faltava. Ela tinha seus amores, seu marido, filhos, amigos e família, trabalho, e ainda assim nunca estava satisfeita. Naquela tarde, ao olhar aquele executivo mineiro perdido no Centro do Rio, ao aproximar-se dele, entendeu que sempre haveriam outras escolhas, outras histórias, e que elas sempre fariam falta, uma falta constitutiva, impossível de ser preenchida. Ele, um desconhecido, lhe faria falta.
Ele disse um muito obrigado, estendeu a mão. Tocaram-se num aperto de mãos. Sorriram um pouco mais, com a cumplicidade de quem troca segredos. Desviaram os olhares e se foram. Cada um com a sua falta, agora identificada na imagem de uma história de amor vislumbrada mas nunca realizada.

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quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

AS TREVAS

               O cair da tarde. Um viera do mar, o outro descera de altas terras. Para trás, lares mais frios, mulheres envelhecidas, crianças duplicadas pela fome. Pois juntaram seus homens, trocaram as colheitas por armas. Às esposas explicaram: ódio, desonra. E portas cerraram com estrondos depois de as atravessarem. Era guerra. Que chorassem.
               Os navios viram a cidade ainda às quatorze horas. O capitão decidiu aguardar o cumprir do sol. Que a escassa luz tornasse parca a realidade, que o que se passaria em plena praça pública tivesse cores de sonho em sua lembrança. Posto que nada as apagaria enquanto fosse vivo, que ao menos fossem retratos turvos de linhas ainda mais obscuras.
               As horas passaram rápidas feito nuvens. O comandante deteve o pelotão ao avistar as embarcações ancoradas a poucos metros da praia. Deu ordens para que esperassem até a noite e depois os cascos brancos seriam da cor das chamas e da fumaça. Em si, contudo, o que incandescia era o desenho de um rosto. O do capitão inimigo em dias mais ternos. Isso já iam dezesseis horas marcados na torre da igreja. Que tudo se apagasse.
               As luzes dos postes excediam as margens d’água e atingiam os olhos quentes do capitão. Pousado na beira, o sol como ele suspenso, prestes a ordenar o desabar das trevas. Na hora, o mar inflou-se em ondas. As proas já tocavam a areia. Em um sopro de vento uma leve brisa regressou: a respiração do oponente junto da sua.
               Homem a homem, as cenas se repetiram. Tombados, mortos e feridos pelas ruas da cidade. O comandante perdera seus últimos soldados. O capitão vira recolhidos ao fundo do mar os seus navios. Súbito, as silhuetas se reconheceram na transparência espessa da madrugada.
               Trocaram tiros à distância. Depois desceram ao combate a mãos limpas. Por vezes, os olhares tocavam-se e a dor ali renascida, dos escombros impuros de suas almas, sem luz nem ar, trouxe-lhes aos poucos de volta a manhã.

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