domingo, 12 de abril de 2009

Felicidade

               O garçom. Não se esqueça. Ele tinha uma barba grossa e cheia, que você dizia querer tocar para ver se espetaria ou se faria cócegas, e talvez tenha tocado, e olhos que paravam dentro dos seus como se ele fosse um anjo magoado prestes a devorá-lo, e talvez o tenha devorado mesmo. Sempre estávamos lá, você somente depois das onze, o que me dava tempo para dois drinques antes que surgisse de dentro de um táxi ou de comodoros negros ou cinzentos, cada dia um. O garçom puxava uma cadeira onde você recostava e começava a contar aquelas histórias compridas e mirabolantes que atravessavam entrada e prato principal, e a mim só restava o café. Mas não que me queixasse. Para alguns a vida é uma cena muda de dois homens num restaurante barato do centro da cidade. Acordara, trabalhara e lá estava, dois drinques depois, pronto para escutá-lo, como todos os dias. A sua deveria ser uma odisséia no espaço, estou certo? Sempre afirmava que não. Mudou de idéia? Naquela noite, sonhei com você. Eu estava ali, terminando o segundo drinque, a vodka nacional arranhando a garganta feito areia. O garçom arrastou uma cadeira e os olhos dele mordiscaram alguma coisa dentro da sua camisa aberta, enquanto se acomodava. Foi aí que o telefone tocou e eu acordei. Falaram a seu respeito. Ferido, preso, porte de drogas. Havia pedido para me avisarem que faltaria ao nosso encontro, com um singelo pedido de desculpas. Saltei da cama e corri ao hospital. Demorou um tempo até descobrir para que setor o haviam levado, mas não me deixaram vê-lo. Era parente, marido? Não, nada disso. Difícil de explicar. O que são dois homens que ano após ano encontraram-se sob a eletricidade fria e o calor apenas presumido entre os corpos? Difícil de explicar. Pois saído do hospital, caminhei até lá. O garçom recebeu-me com um sorriso estranho, a barba grossa espalhada pelo rosto. Puxou-me uma cadeira como só fazia para você. O drinque chegou antes de poder pedi-lo e, depois disso, a noite apagou-se, a eletricidade fria regrediu até o negror e, quando tudo clareou novamente, havia sangue em toda parte, uma mulher gritava e o garçom estendia-se desmaiado no chão. Sem saber o que fazer, corri e corri e, quando cansei de correr, os homens vieram e fui levado à delegacia. Homicídio, alguém disse. Um homem havia sido morto pelas minhas mãos. O garçom. Não se esqueça. Uma noite, você me disse que gostaria de saber como seria a sensação. Pois é espinhosa e faz um pouco de cócegas. E aqueles olhos de anjo magoado parados frente aos seus. Difícil de explicar. Nunca mais estivemos lá, mas um dia me deixam sair e você poderá me contar mais uma história comprida e mirabolante até a hora do café.

(Tema da semana: Garçom!)

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