quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

AS TREVAS

               O cair da tarde. Um viera do mar, o outro descera de altas terras. Para trás, lares mais frios, mulheres envelhecidas, crianças duplicadas pela fome. Pois juntaram seus homens, trocaram as colheitas por armas. Às esposas explicaram: ódio, desonra. E portas cerraram com estrondos depois de as atravessarem. Era guerra. Que chorassem.
               Os navios viram a cidade ainda às quatorze horas. O capitão decidiu aguardar o cumprir do sol. Que a escassa luz tornasse parca a realidade, que o que se passaria em plena praça pública tivesse cores de sonho em sua lembrança. Posto que nada as apagaria enquanto fosse vivo, que ao menos fossem retratos turvos de linhas ainda mais obscuras.
               As horas passaram rápidas feito nuvens. O comandante deteve o pelotão ao avistar as embarcações ancoradas a poucos metros da praia. Deu ordens para que esperassem até a noite e depois os cascos brancos seriam da cor das chamas e da fumaça. Em si, contudo, o que incandescia era o desenho de um rosto. O do capitão inimigo em dias mais ternos. Isso já iam dezesseis horas marcados na torre da igreja. Que tudo se apagasse.
               As luzes dos postes excediam as margens d’água e atingiam os olhos quentes do capitão. Pousado na beira, o sol como ele suspenso, prestes a ordenar o desabar das trevas. Na hora, o mar inflou-se em ondas. As proas já tocavam a areia. Em um sopro de vento uma leve brisa regressou: a respiração do oponente junto da sua.
               Homem a homem, as cenas se repetiram. Tombados, mortos e feridos pelas ruas da cidade. O comandante perdera seus últimos soldados. O capitão vira recolhidos ao fundo do mar os seus navios. Súbito, as silhuetas se reconheceram na transparência espessa da madrugada.
               Trocaram tiros à distância. Depois desceram ao combate a mãos limpas. Por vezes, os olhares tocavam-se e a dor ali renascida, dos escombros impuros de suas almas, sem luz nem ar, trouxe-lhes aos poucos de volta a manhã.

Marcadores:

0 Comentários:

Postar um comentário

Assinar Postar comentários [Atom]

<< Página inicial