terça-feira, 13 de janeiro de 2009

Um trema numa qüinta-feira

Zé Luiz era o tipo de cara pacato e sacana. Sempre sorrindo, simpático, do porteiro à secretária da repartição, a quem aliás chamava mentalmente de putinha feia, logo após seu sorridente cumprimento. - Bom Dia, Dona Quitéria... e lhe vinha o pensamento imediato: “Quitéria, a putinha feia”. Zé não tinha certeza se produzia tais pensamentos ou se eles simplesmente apareciam e não era possível controlá-los. Fato é que não se importava com isso e até se divertia.

-Fala, Moreira... “como é ter essa sua cara de corno?”, -Bom Dia, Genival... “Genival e a cabeça do meu pau!” E ele ria e ria e se divertia com essas bobagens, fazendo com que todos pensassem que se tratava apenas de simpatia, o que aliás combinava com seu aspecto bonachão.

Gordo, gordo, tinha cabelos nas costas até a nuca, bochechas rosadas e estava quase sempre suado, mesmo no inverno. Era dessas pessoas que conseguem suar e rir ao mesmo tempo.

E Zé tinha um cargozinho bobo como ele. Filho de militar e de família tijucana, fez concurso assim que terminou o colégio e foi comemorar todo animado a aprovação na Confeitaria Colombo do centro, como havia lhe prometido sua tia Guida, irmã mais velha de sua mãe. Seu trabalho consistia basicamente em receber processos e encaminhá-los ao setor responsável. Também fazia atendimento ao público, numa média de cinco ou seis por dia, momentos que considerava como aqueles “que fazem uma vida valer a pena”. Eventualmente, ou a cada seis meses, fazia um relatório geral.

Nessa quinta-feira, dia em que Zé Luiz gostava de se masturbar antes do trabalho, estranhou seu quarto ao abrir os olhos. Não reconhecia como seu. Não reconhecia como um quarto. Não se reconhecia.

Nessa quinta-feira, dia em que Zé Luiz, costumava passar pela Igreja da Nossa Senhora da Aquerupita antes do trabalho, acordou zonzo, vestiu-se com a fantasia de Zorro que ganhara há dois meses como pagamento de uma aposta, errou o caminho e foi parar no mercado de peixes. Tinha o olhar vago e parecia não se reconhecer no mundo. A máscara que usava estava um tanto quanto torta e obstruía parte de seu olho esquerdo. Não sorria, não falava, limitava-se a respirar ruidosamente, como faz um porco espinho no calor. Mesmo assim foi possível saltar sobre o balcão, apanhar um facão de peixe e passar a cortar um por um, dos pequenos aos enormes, dos crustáceos aos moluscos.

Tentaram contê-lo mas foi impossível e Zé Luiz saiu correndo rápido, como da última vez, na aula de educação física no colégio militar. Estava todo babado de baba de peixe, fedendo e escorregando em suas havaianas velhas de palmilha branca amarelada e tiras azuis. Na esquina com a Rua da Reforma, ouviu um sino agudo e isso pareceu despertá-lo. Era o bonde das dez, avisando a curva, mas já era tarde.

Zé Luiz escorregou e deslizou no paralelepípedo morno da manhã. O bonde dividiu e esmagou seu corpo em dois e duas bolas de carne foram formadas, como dois pontos, uma junto da outra, logo acima do bonde tombado.

Na manhã seguinte, na primeira capa do Correio Carioca, uma foto e a manchete: Trema e tragédia: Bonde parte ao meio funcionário ensandecido.

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2 Comentários:

Anonymous Anônimo disse...

Ótima caracterização, dá para reconhecer o tipo perfeitamente. E nós concordamos no desfecho; morre algo brejeiro e genuinamente brasileiro.

14 de janeiro de 2009 às 11:43  
Blogger Unknown disse...

muito bom

29 de janeiro de 2009 às 17:32  

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