quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

UM QUARTO, UM DEZEMBRO

               Pontada fina no peito. Quando vinha daquele jeito, apenas um segundo de dor inconsolável e era como se jamais houvesse existido Deus – naquela hora, era bom parar. Procurar repouso no dia ainda em curso, a julgar pelos filetes em amarelo e vermelho que se atreviam entre as traves entreabertas da veneziana. Na praia, uma ave deveria se preparar para alçar vôo, primeiro alinhando as asas na direção do horizonte, depois firmando as patas para o impulso e então, quase magicamente, ir ganhando altitude, até sentir no rosto o vento gelado que corre por sobre as montanhas. Gordas macilentas, ao redor, boiariam nuvens de algodão, enfileiradas feito manadas de elefantes. Acima de tudo isso, um meteoro, o mais célere, deter-se-ia no ar, cerrado em Sua mão! Pronto. Estava rodeada de conforto. E a dor, esta não tinha mais importância. Estava tranqüila, aquecida novamente por Seu amor. O que viria depois? Súbito, sentiu puxarem-na com força. Era a enfermeira, a negra e gorda de palmas grossas, quem lhe estendia o braço para fora do leito, até que um ardor velozmente alastrou-se até o ombro. Foi então que a ave, as nuvens, o meteoro, Deus, tudo recuou para além do seu alcance naquela cama, naquele quarto, naquele hospital, naquele famigerado dezembro que jamais cumpriria a sua transmutação em janeiro claro, de dias impecáveis de sol. Morria. Ninguém mais duvidaria daquilo. Até mesmo a doce irmã, de invejável confiança nos desígnios Dele, já viera se despedir, mais cedo, ao lhe trazer flores-do-campo e palavras de fé, quando, em um breve instante, a tristeza em seu olhar tremulou, fitando o vazio.
               Despertou no plantão noturno. Aquilo já não tinha mais o mesmo efeito, o de lhe roubar a consciência por dias. Sabia do horário pelo chiado monótono do radinho de pilha que o enfermeiro costumava escutar até adormecer, exausto, esquecendo-se das medicações. Umas canções enjoativas, algumas indecorosas, impregnaram o ambiente por alguns minutos. Uma loja de departamentos anunciou que já era Natal. Natal. Como poderia ter se esquecido? E, naquela noite, quando a dor no peito veio mais forte, lembrou-se de aves, de nuvens, de meteoros sobrevoando a cidade estrelada de janelas e varandas, com gosto de celebração natalina no ar, e pensou aliviada que naquela hora ela também nascia.

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3 Comentários:

Blogger clarisse disse...

Existe uma tristeza intrínseca ao Natal, isso que você escreveu.

21 de dezembro de 2008 às 11:41  
Anonymous Anônimo disse...

Mas eu não quis falar de tristeza. Foi uma tentativa de fugir do que havia de consumista e popularesco no tema e procurar algo de sublime, mesmo em um espaço reduzido. E sem tristeza, pensando mais em renovação, em alívio. Beijos.

21 de dezembro de 2008 às 15:14  
Anonymous Anônimo disse...

com a sua descricao, da até para sentir o cheiro do lugar!! :)

22 de dezembro de 2008 às 16:27  

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