quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

A BOA MARIANA

               À noite, choveu grosso. E a boa Mariana parou à janela para admirar. “Água bastante para desencardir os pastos”, pensou, agarrando-se excitada aos babados do avental. Para uma mulher como aquela, em cuja face se lia gravada a ancestral devoção aos patrões – e talvez uma única e inconclusa linha a respeito de uma paixão deixada na juventude – um temporal daqueles, com raios de luz estourando nas vidraças, era capaz de fazer estremecer suas pernas e enchê-la de um estimulante sentimento de ameaça. Embora os riscos possíveis consistissem simplesmente em receber uma bronca da governanta, caso esquecesse de retirar as roupas do varal, o que não acontecera, e o de encher de lama os sapatos no caminho para o pomar na manhã seguinte, o que resolveria calçando botas, ela se lembraria de adicionar às suas orações dominicais um agradecimento por haver atravessado a tempestade em segurança. E nas tardes subseqüentes, nos intervalos ociosos entre almoço e chá vespertino, ela se sentaria ao fogão à lenha e entoaria cantigas alegres, retardando ainda acesa a fagulha daquela aventura. E as semanas correriam leves, o trabalho renderia sem cansaço e tudo aquilo lhe daria forças para despertar todos os dias mais cedo e trabalhar com mais afinco, até que – não sabia.
               A patroa chamou o seu nome. A boa Mariana desprendeu-se da janela com um salto para trás. Correu para atendê-la e foi encontrá-la no quarto, em companhia do filho. Disse-lhe que naquela noite viriam visitá-los o Conde e sua filha e que teria pouco tempo para deixar tudo em ordem. Desceu as escadas velozmente, em direção à copa.
               Horas depois, escutou passadas do lado de fora e logo avistou a figura solene do Conde, desembarcando do coche, auxiliado pelo criado. Vestia farda de gala, com o reluzir de ouro no colarinho e nos punhos, e uma espada bem polida pendurada na cintura. Atrás dele, uma silhueta diminuta remexeu-se dentro do veículo. O lacaio virou-se novamente e, então, a boa Mariana pôde enxergar a jovem de pele muito clara e cabelos negros, envolta em camadas de renda cor-de-rosa, aproximar-se do local onde ela se encontrava parada. O rosto da moça iluminou-se do amarelo dos lampiões, próximo à porta, quando identificou seus olhos claros e os lábios sedosos de framboesas. A patroa pediu para que ela tirasse os cavalos da chuva e lhes providenciasse água e feno. Já puxava os animais no sentido do estábulo, com ajuda do cocheiro, quando percebeu que a jovem e o filho da patroa olhavam-se enamorados. Súbito, veio-lhe a vontade de vomitar.
               Do estábulo, foi direto à cozinha, onde os demais empregados encontravam-se em plena atividade. Secou-se com um pano velho que lhe estendeu a cozinheira e seus olhos vaguearam pela paisagem na janela. A chuva caía com força, engrossando o rio que corria em descontrole. Os relâmpagos chicoteavam o ar, além dos morros. A boa Mariana permaneceu ali por alguns minutos e pensando nos perigos que aquela noite chuvosa oferecia, desejou que aquilo lhe ocorresse naquele instante.

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1 Comentários:

Blogger clarisse disse...

Essa Mariana... Adorei!!

21 de janeiro de 2009 às 14:38  

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