domingo, 18 de janeiro de 2009

Caíram no meio da praça, juntos, como sempre andaram. Ninguém pareceu se importar ou ver. No meio de um dia ensolarado de verão, crianças correndo, casais conversando, pessoas de bicicleta e lá no meio de um canteiro, eles caídos e ninguém para ajudá-los. Não faziam falta ao cenário, a praça continuava cheia, todos alegres. Depois de tantos anos, na velhice, as pessoas podem se tornar desnecessárias. Seu Mario, durante muito tempo o único pediatra da cidade, fora muito importante, seu telefone nunca era esquecido pelas famílias, tocava sempre, em especial em dias de verão, quando acidentes de bicicleta erma comuns. Dona Aurora costumava atender os telefonemas, enfermeira formada, muitas vezes solucionava dúvidas sem nem precisar consultar o marido, Limpar bem com água boricada Dona Vânia, vai parar de sangrar. Se não para a senhora traz o Paulinho aqui que o Dr. Mario atenderá. A qualquer hora, a senhora já sabe. Mas tenho certeza que o sangue vai estancar!, sorria e desligava sabendo que o machucado ia sarar e dali a uma semana Paulinho arranjaria outro, como todos os meninos de 8 anos. Enquanto isso Dr. Mario atendia bronquites, cataporas, um e outro sarampo e tantas outras enfermidades infantis. Sempre com a casa cheia, pois o consultório era na primeira sala da casa, a primeira porta à direita da porta de entrada, mas as crianças, e seus pais, sempre se espalhavam, falavam com Dona Aurora, brincavam com os 4 cachorros da família, faziam farra no quintal interno enquanto esperavam. Quando algum guri estava realmente mal, Dona Aurora leva para um quarto nos fundos, com uma cama, onde podia descansar enquanto esperava a consulta do doutor. No meio tempo, Carlota, a empregada, preparava um bolo e café, porque no consultório do Dr. Mario ninguém ficava sem bolo no final da consulta. Tinha criança que só comparecia por causa do bolo e pai que só levava o filho por causa do café. Carlota, uma negra alta, com dois filhos que foram "salvos" pelo doutor, gostava de ver o alvoroço. Carlota já tinha morrido fazia 10 anos, naquele domingo de sol. A casa de Dr. Mario e Dona Aurora já não era mais referência da cidade. Com o posto de saúde, a população mais humilde deixou de pedir favor, pagar metade do preço da consulta, coisas que Dr. Mario fazia com alegria. Agora tinham direito a médico, não precisavam pedir. As famílias mais ricas iam para o hospital particular, na cidade vizinha, nem 20 minutos de carro. Achavam mais confiável um hospital, com todos os exames possíveis, a um consultório na casa do médico. Os conselhos de enfermagem de Dona Aurora eram considerados ultrapassados, chás eram coisas de avós, muito melhor tomar um remédio mesmo. Assim, o casal foi esquecido, sem filhos, sempre dedicado aos filhos dos outros, viraram fantasmas na cidade, sem ter o que acrescentar àquela sociedade que não queria saber deles. Quando caíram, naquele domingo quente, em mais um passeio de mão dadas no meio da praça, como faziam desde os tempos de namoro, há mais de cinqüenta anos, ninguém correu para ajudar. Mas depois de algum tempo, algumas crianças passaram correndo pelo canteiro distante da praça e viram os corpos de dois velhinhos caídos. De esquecidos, Dr. Mauro e Dona Aurora viraram notícia da cidade, pelo menos na hora da morte. Foram enterrados juntos, e muitas pessoas compareceram, antigos pacientes, filhos destes, gente que nunca tinha se importado em saber quem era aquele casal antigo. No cemitério, num momento que deveria ser triste e melancólico, começaram a ser trocadas receitas de bolos, dos remédios amargos, do carinho. De repente, ao longo da semana, histórias do Dr. Mauro e Dona Aurora foram sendo mais e mais resgatadas. Crianças paravam na casa velha e ficavam olhando, criando histórias sobre aqueles velinhos. Receitas de chás voltaram à moda. O legado daquele casal dos tempos de antigamente se tornou mais vivo após sua morte. Voltaram a ser úteis e ficariam satisfeitos com isso.

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2 Comentários:

Anonymous Anônimo disse...

Hmmm. Será o trema volta algum dia? Acho que pode voltar. Talvez em uma onda de identidade nacional, alguns vanguardistas do futuro (!) comecem a escrever com trema de novo.

20 de janeiro de 2009 às 09:54  
Blogger Mariana Laura disse...

Felipe, obrigada pela visita ao Soñé! Os caras são mesmo muito bons e trabalham com categoria no quesito samba. Volte sempre. beijo

20 de janeiro de 2009 às 13:20  

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