quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

O FIM DO TREMA

               Coçou os olhos com força desejando queimar as imagens que vira, no calor das mãos. Então por um instante o mundo transformou-se na névoa fina suspensa de cegueira, até que a luz correu liquefeita entre seus dedos, despertando-o de volta ao escritório, ao edifício, à tarde em que se encontrava. À sua frente, retomando o gesto do ponto onde parara para contemplá-lo novamente espantada, até ser flagrada por ele neste espanto, ela então acomodou o telefone entre o ombro e a orelha, enquanto suas mãos trabalhavam no correr de páginas do catálogo, atrás de um médico.
             Aquilo começara pela manhã. Após despertar, sem suspeitar de nada de errado, teve pressa em se aprontar e se despediu da esposa com um aceno. Tomou o metrô em direção ao centro da cidade e já ia sacando da pasta o jornal amarrotado da véspera que não tivera tempo de ler, quando uma parada brusca do trem fez com que fosse ao chão, arremessando pasta e jornal, e indo ver-se entre as sandálias de uma adolescente e os mocassins de um rapaz, todos o encarando assustados. Alguns vieram ao seu socorro, ao que ele constrangido recusou qualquer auxílio. Alguém lhe trouxe a sua pasta; o jornal fora parar debaixo de algum banco e não foi encontrado. Quando quis erguer-se, batendo a poeira do paletó, sentiu o corpo desequilibrar-se para frente e para trás, depois voltou a tombar de lado para novo espanto geral. Então, deu-se o que se deu: tonto, foi perceber que seus pés haviam desaparecido!
               Com esforço, engatinhou da estação até o escritório, que por sorte localizava-se bem ao lado. No elevador, o ascensorista comentou nervoso a respeito de um esporão que quando cismava de doer, não podia sequer pisar no chão. Mas ao saltar no andar, já não eram mais apenas os pés: as pernas sob os joelhos sumiram evaporadas. Arrastando-se, alcançou a porta e se trancou em sua sala. Avistou a cadeira que a cada momento parecia mais alta e, a muito custo, conseguiu sentar as costas sobre ela. Permaneceu até o horário do almoço, recluso, pensativo. À secretária, dissera que não estaria para ninguém. Pouco depois do meio-dia, porém, quando restava dele apenas o segmento acima do peito, decidiu convocá-la para uma última ordem.
               Que viesse o médico. A funcionária correu apavorada, para buscar o catálogo de telefones. Quando conseguiu chamá-lo, entretanto, compreendeu que era tarde demais para qualquer medida, clínica ou cirúrgica, posto que já não havia mais nada do homem, senão a sua cabeça – que nem doía. Atônito, ele então pediu para ser deixado só com os seus pensamentos, que eram tudo o que lhe sobrara. Meia hora depois, adentrou a sala a secretária em companhia do médico. Acharam-na vazia.
             Os dias passaram aparentemente sem sobressaltos. A secretária continuou a trabalhar no mesmo escritório. Em uma tarde, já no final do expediente, lembrou-se de que precisaria consultar o médico acerca de certas mudanças de comportamento em seu filho, para-quedista da Aeronáutica, que a andavam preocupando. Lembrou-se de onde havia visto o catálogo de telefones pela última vez e foi buscá-lo. Ao entrar naquele local novamente, durante breves segundos, pegou-se pensando no antigo chefe e na sua própria vida e terminou lamentando que aquele mundo, gradativamente, fosse perdendo o seu charme.

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2 Comentários:

Blogger Rodrigo P disse...

Clap clap clap clap clap

Se fosse uma apresentacao de piano, eu estaria gritando Bravo! sem vergonha nenhuma até agora.
Crítico, assassino e engraçado.
Bom mesmo.

14 de janeiro de 2009 às 22:09  
Anonymous Anônimo disse...

Legal, Rodrigo! Valeu! Um abraço.

17 de janeiro de 2009 às 21:43  

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